19 dezembro 2022

1972 / 2022: 50 anos de fanzines de banda desenhada em Portugal - E agora?

Assinala-se por estes dias meio século de edição de fanzines de banda desenhada em Portugal. Apesar da data redonda, o momento não é propício a grandes euforias ou comemorações, pois a edição de fanzines em Portugal está moribunda, apesar de algumas honrosas e esporádicas excepções.
Sem desprimor para edições precursoras, como “O Melro”, editado nos anos 40 por José Garcês, podemos apontar o ano de 1972, como marco inaugural da publicação de fanzines de BD com o surgimento de títulos como Árgon, Saga, Quadrinhos, Orion, Ploc!, Yellow Kid e Copra.
O 25 de abril de 1974, proporcionou um novo ambiente de liberdade editorial e de expressão, assistindo-se à disseminação de edições em diversos locais do país, com especial preponderância de Lisboa e do Porto. Ao mesmo tempo, ocorre um notório desenvolvimento dos mecanismos de impressão e reprodução, tornando-os bastante mais acessíveis, o que facilitou o aparecimento de diversas publicações. Nesses tempos, os fanzines constituíam um espaço de partilha e divulgação de trabalhos e expressões dos seus autores e em menor escala, de veículo de intervenção cultural ou social. Estas publicações, assumiam-se como única alternativa para muitos autores apresentarem os seus trabalhos, uma vez que o acesso à publicação em álbum estava vedado à maior parte deles. De forma amadora e com uma qualidade muito oscilante, iam surgindo pelo país as mais variadas publicações que incluíam BD e alguns textos de divulgação e muito raramente de crítica e reflexão. Na segunda metade dos anos 70, aparecem publicações como “Estripador”, “O Evaristo”, “O Ovo”, “Prancheta”, “Vinheta”, “Gazua”, entre inúmeros outros. Realizam-se também diversas Feiras, Salões, Festivais e Jornadas que permitem aos editores e autores apresentar as suas publicações e contactar directamente com o público.
Depois de algum fulgor registado nos anos 70 e 80, o movimento fanzinista começa a decair gradualmente a partir dos anos 90, tendo vindo a definhar no novo milénio, à semelhança do que foi acontecendo à BD mais alternativa produzida e editada em Portugal. Os propósitos principais da edição fanzinistica, como sejam a divulgação de trabalhos autorais, a partilha e interação comunitária, foram sendo substituídos no quotidiano por formas de entretenimento mais modernas, como o home-vídeo, os computadores pessoais, consolas de jogos eletrónicos e muito especialmente pela internet. A rede global, prometia uma conectividade alargada e a possibilidade ilimitada de chegar facilmente a toda a gente em todo o lado. Ao invés, esta utopia foi sendo obliterada por uma generalizada resignação melancólica e pela crescente atomização social, onde a auto-suficiência activista se satisfaz na artificialidade de um ecrã e respectivas caixas de comentários. Hoje em dia, os mais jovens só comunicam através de mensagens curtas e estão soterrados numa cultura narcisista de selfies. Lamentavelmente, as novas gerações estão a esvair a sua energia da arena política e cultural e a aplicá-la somente nas redes sociais para o respetivo círculo fechado de amigos.
Aqui chegados, impõe-se a questão se os fanzines fazem algum sentido actualmente?
Quando o espectro do frio, da fome e da guerra paira ameaçadoramente sobre milhões de pessoas, parecerá fútil escrever sobre fanzines, mas para toda uma geração de jovens oriundos da classe trabalhadora, que não tinha acesso à alta cultura e sem dinheiro para adquirir os originais em suporte físico (discos, livros, filmes, etc.), a televisão pública (RTP 2), a imprensa musical e os fanzines, foram fundamentais para a nossa formação e vivência, pois significavam a irrupção do culturalmente novo e provocavam algum distúrbio num quotidiano de horizontes bastante delimitados. Eram esses pequenos abalos que permitiam sonhar que algo poderia mudar em outras áreas da vida, que talvez as estruturas e o sistema vigente não fossem imutáveis para sempre.
Actualmente, assistimos à progressiva desmaterialização da vida e à manipulação da informação de modo a condicionar qualquer tentativa de pensamento crítico, caminhando para uma situação de infertilidade imaginativa e de constante repetição de estilos e de modas, sintoma evidente de uma cultura estagnada e completamente zombificada.
Acredito convictamente que os fanzines poderiam contribuir para insuflar a BD e a cultura com alguma vida, agregando as novas e as antigas gerações em projectos comuns e, gerando múltiplas ignições de novidade, de talento, de inconformismo e ousadia.

Publicado originalmente em 26-08-2022 no blogue da Chili Com Carne

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