Le Droit Humain
Le Droit Humain nasceu de um convite endereçado por André Lemos a Thibault Tourmente para editar na Opuntia Books. Em alternativa, T. Tourmente remeteu um conjunto de colagens / associações de imagens, desafiando Lemos para intervir sobre esses trabalhos.
O artista francês Thibault Tourmente tem desenvolvido ao longo dos últimos anos uma intensa actividade de respigador visual, resgatando ao olvido um manancial de imagens, que vai recolhendo e recortando em livros e revistas que já ninguém quer, e com elas propõe uma reapropriação do antigo e do estranho.
Pormenores anatómicos, esculturas antigas, cenários de guerra e violência, um fluxo de imagens descontextualizadas do seu suporte original e dispostas aleatoriamente, oferecendo-se a uma multiplicidade de interpretações subjectivas, moldadas tanto pela memória difusa, como pela sensibilidade de cada um.
As imagens provêm sobretudo de enciclopédias, jornais e revistas, manuais técnicos, e outras obras impressas que se tornaram obsoletas e descartáveis, em consequência da proliferação das novas tecnologias.
A recolha sistemática de imagens em publicações documentais foi ganhando corpo na série de trabalhos sob a designação “Inventaire Deraisonné”, cuja metodologia e coerência visual se mantêm bem presente em Le Droit Humain.
Estes trabalhos de T. Tourmente inserem-se na mesma linhagem de “Atlas Mnemosyne” de Aby Warburg, das colagens e composições dadaístas, e também do monumental "Atlas" de Gerhard Richter.
As composições misteriosas e formalmente sóbrias de Tourmente são retrabalhadas reactivamente por André Lemos, acrescentando novas camadas ou abrindo outros trilhos de significado. À configuração fragmentária das imagens de T. Tourmente, Lemos sobrepõe o seu desenho de forma orgânica, por vezes quase impercetível ao olhar desatento, parecendo que sempre fez parte daquela imagem; noutras situações, o desenho destaca-se e as imagens de Tourmente são apenas o cenário para a emergência dos ícones primitivos e das magias negras de Lemos.
Nesta conjugação labiríntica de imagens, o tempo histórico é obliterado e colapsado, criando-se várias meta-narrativas subjectivas, traçando grandes elipses entre civilização passada, rituais, marcas de guerras e corpos medicalizados, uma iconografia vital, através de uma secreta alquimia na qual as imagens do passado regressam ao presente.
A substituição do texto descritivo pela combinação de imagens para exprimir e conjugar ideias, reduzindo a palavra escrita apenas à pequena legenda, fornecendo um referencial mínimo e o que vemos são referências a aparições da Virgem, a Gaza e à Guerra dos Seis Dias, a Kravica na Bósnia-Herzegóvina e ao genocídio no Ruanda, instigado pelas emissões radiofónicas a destilarem ódio e a apelarem ao manejo dos machetes de lâmina romba, que vão espalhar um rasto de milhares de mutilados. Os bustos da Antiguidade Clássica e do Renascimento emparelhados com as mãos e os braços decepados. As composições de Tourmente, na sua constância formal e cromática, revelando padrões gráficos comuns e outras afinidades, incorrem no risco de estetizar a violência, a doença e a deformação, contribuindo para neutralizar a carga simbólica intrínseca das imagens, num registo próximo da apropriação obsessiva das imagens operada pela Pop Arte. Esta arrumação, quase automática, das imagens pelas suas afinidades estéticas, poderia incorrer num certo relativismo que faz equivaler tudo, mas os autores conseguem fugir dessa armadilha, utilizando a dose certa de abstracção e também de humor.
Quando tememos que o sistema de representação fique demasiado conformado com os aspectos artísticos e formais, os autores surpreendem-nos com a introdução de elementos dissonantes, com rasuras que esgravatam as superfícies alisadas pela neutralidade, produzindo constelações visuais de imagens incapazes de se manterem confinadas num determinado período histórico.
Le Droit Humain, Agosto de 2022, 60 págs, impressão a cores, 14,5x20,8cm. Tiragem: 30 exemplares. Edição: Opuntia Books [OB-031].
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