Edição e Fanzines, breves apontamentos
Este texto é um pequeno apontamento sobre o papel que, me parece, pode ser reclamado pelos fanzines e pela autoedição em geral.
Costumo pensar nestas publicações como uma disputa com o tempo, com o esquecimento, mesmo que o próprio fanzine contenha em si essa perenidade e temporalidade finita, mesmo que nas suas páginas estejam muitas vezes impressos manifestos e ideias com vida curta. Ainda que muito pouca gente leia fanzines, eles existem para o mundo, são a projecção dos nossos interesses, sonhos, ansiedades, preocupações e sentimentos. Os fanzines, punhado de folhas agrafadas, por existirem assim no limite de um fim próximo, poderão ser, então, uma tentativa de imortalização do espírito. Em estado perene, essa ideia de publicar mais ou menos precária e instável, existe sem razão, sem explicação, sai de dentro para fora. É a existência insensata e frágil que me aproxima e me cativa na edição deste tipo de publicações e nessa fugacidade e instabilidade formal e das ideias existe também o reverso da medalha. Uma navalha com duas lâminas.
Por um lado, move-me essa tentativa prazerosa de criar num formato precário, por outro angustia-me que não exista público/mercado que consiga muitas vezes absorver os inúmeros fanzines que se vão publicando - o público que consome, é muitas vezes o mesmo que produz - influenciando muitas vezes a criatividade e produtividade das publicações.
Esta é uma questão para a qual se deve procurar solução. Os fanzines existem para satisfazer os fan-editores (os autores/editores de fanzines) que, ou não conseguem publicar o seu trabalho em outras publicações mais mediatizadas e reconhecidas, ou que encontram nos fanzines e na autoedição um espaço de experimentação e confronto que provavelmente não lhes seria permitido em publicações estabelecidas, por serem edições de elevado estatuto comercial e/ou artístico que acabam por exercer no autor essa pressão e deixar pouco espaço para tentativas de experimentação criativa (embora existam excepções). A edição de fanzines satisfaz um nicho de mercado pequeníssimo que se revela na maior parte dos casos nos próprios fan-editores ou, caso a temática seja mais especifica, num pequeno conjunto de interessados (caso contrário, essa publicação seria editada e distribuída em maior escala).
Há ainda uma outra questão que contribui para que os fanzines continuem afastados de um público mais abrangente, e que me parece importante mencionar, que é o caracter de urgência presente em muitas destas publicações, e volto à já mencionada característica precária que não é somente a precariedade financeira dos autores, mas neste caso da própria publicação enquanto objecto portador de imagem e escrita. Essa dimensão de urgência leva muitas vezes ao descuido na edição e no próprio discurso teórico que envolve a publicação, e apesar de poder acentuar o distanciamento entre o autor e o público, este inadiamento, esta urgência de tornar público é como um grito que se faz ouvir (ainda que na maior parte das vezes não ecoe e se torne quase mudo, um grito emudecido não pela força da experiência mas pela inoperatividade contida no próprio objecto publicado).
O problema financeiro há de ser sempre um entrave ao desenvolvimento de um mercado e da educação do público. As editoras de banda desenhada (embora a mesma situação se aplique a outras editoras ligadas à literatura, à fotografia, ao cinema, às artes visuais, etc.) acabam por preferir publicar as infindáveis histórias de super-heróis americanos e seus compinchas, em detrimento de autores portugueses, ou da tradução de outros estrangeiros que alimentem a criação alternativa, em suma, de uma banda desenhada que convoque a discussão de temas diferenciados e consciencializadores, política, estética, filosófica, e culturalmente, deixando de parte as explosões e fantasias imperialistas de poderosos/mutantes/humanos. O risco é grande, a vontade é dúbia (parece-me) e o dinheiro escasseia. Daí que os fanzines e a autoedição prevaleçam muitas vezes como espaço de agitação e experimentação. Esse papel agitador em potencial desempenhado pela internet, parece-me, por ter implodido rapidamente, se transforma num abismo de informação poluída e que nos delega para um marasmo e confusão, para além de que a fisicalidade do papel e o cheiro da tinta desaparece, e é também aqui, na fisicalidade e relação corporal que o fanzine mantém com o leitor, uma interacção genuína e real, que pode ser fomentada uma verdadeira dinâmica em redor das emoções, da empatia, da fraternidade e da tomada de consciência de si próprio como ser individual e físico inserido na esfera do real.
Penso que só pela união e associação entre editores de uma maneira séria e consciente, na tentativa de uma aproximação elucidativa às pessoas, as publicações com este carácter especial de quase preciosidade poderão sentir alguma luz – somente a necessária - sobre as suas capas e folhas. Mas sempre, sempre sem concessões criativas. E este é um trabalho inglório e difícil.
Em relação ao objecto com intenção em potência compreendo que uma publicação dificilmente poderá ter peso algum que faça operar alguma mudança na nossa realidade. Ainda que o seu poder seja ténue, acredito que no acto de publicar reside algum espaço reivindicativo, de resistência, ainda que em potência e com fraca capacidade de competir com outras plataformas de partilha, informação e comunicação. Mas essa ansiedade e força estão lá. Esse característica reivindicativa está decalcada no próprio acto de tornar público, de publicar, nos gestos, no tempo, o tempo de empenho em fazer nascer do papel e da tinta, dos agrafos e da linha, da cola e do tecido, um objecto vivo, que transporta nele um pouco da força anímica que nos faz sonhar e ainda, apesar de todas as dificuldades, sentir que é possível resistir. É possível furar a violência do real e encontrar um espaço individual ou colectivo de partilha. Nas páginas dos fanzines, dos livros de artista, dos panfletos -quero acreditar- reside ainda um lugar virgem e honesto onde nos podemos tornar nós próprios, tomar partidos, fomentar opiniões, fazer existir as imagens e as palavras que nos perseguem e que necessitamos tornar públicos num espaço não virtual, com texturas e cores que palpamos e cheiramos. Nestas folhas ainda podemos existir individualmente, colectivamente, anonimamente e intimamente. Alguém num outro lugar irá receber-nos.
Texto retirado do blogue Façam Fanzines, Cuspam Martelos de Tiago Baptista.
Texto retirado do blogue Façam Fanzines, Cuspam Martelos de Tiago Baptista.
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